Foto - Luiz Henrique de Jesus
Ultimamente tenho colocado textos para a nossa
reflexão interna, para analisarmos o que estamos fazendo de nossas vidas, e de
como precisamos mudar. Ledo engano se pensa que não tem a ver com a minha
profissão, tem muito a ver.
Nos trabalhos que faço, tanto na Radiestesia,
no Tarot e com a Homeopatia, tenho observado, a enorme necessidade das pessoas
de pararem e pensarem em sua vida; o que estão fazendo, para onde querem ir, o
que devem melhorar, mas o principal é a forma como pensam e falam.
A
energia que geramos num simples pensamento, numa palavra dita, pode gerar um
estrago para si e para os que estão a nossa volta que não é percebido.
Por
isso vamos refletir com o texto abaixo sobre a TRANSFORMAÇÃO.
A pipoca
A culinária me fascina. De vez em quando eu
até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as
palavras do que com as panelas.
Por isso tenho mais escrito sobre comidas que
cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária
literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da
cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz,
bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro
poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma
celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e
competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta,
psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do
pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas.
Provocam
a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia
em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e
duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões
metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma
paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu.
Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma
pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
A pipoca se revelou a mim, então, como um
extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu
pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma
panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido
religioso? Pois tem.
Para os cristãos, religiosos são o pão e o
vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria
(porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser
bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.
Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a
Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada
do Candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.
Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio
dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e
trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de
tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei
como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar
as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos
amolecessem e pudessem ser comidos.
Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado.
Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que
acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores
brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou,
então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem,
para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o
estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblé?
É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande
transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que
devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que
acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes,
impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos
transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só
acontece pelo poder do fogo.
Milho de pipoca que não passa pelo fogo
continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes
transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo
fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza
assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor
jeito de ser.
Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando
a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de
fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar
pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão —
sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o
fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande
transformação.
Imagino
que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais
quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura,
fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar
a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que
ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação
acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que
ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do
casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de
pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é
o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de
outro.
"Morre
e transforma-te!" — dizia Goethe.
Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar
a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do
milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida
inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para
ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os
piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto
às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem
que a vida é uma grande brincadeira...
"Nunca
imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi
precisamente isso que aconteceu".
Rubem Alves
*O texto acima foi extraído do jornal
"Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna
bissemanal.